segunda-feira, 15 de novembro de 2021

 Com quem fica o seu filho pequeno?



Você é solteira? Quer ter filhos? Você é casada? Tem filhos? Com quem fica a sua filha pequena? E se ela adoecer?

Se você é mulher, eu diria que tem perto de 100% de chances de ter escutado alguma dessas perguntas em um processo seletivo. Há muita gente que torce o nariz para esse tipo de questionamento durante uma entrevista, alguns defendem dizendo que é preciso conhecer o lado pessoal do candidato e outros até declaram, em debates calorosos nas redes sociais, que é direito da empresa perguntar o que quiser para o candidato.

Eu? Bom, eu acho esse tipo de pergunta um absurdo imoral, um abuso com as profissionais que precisam passar por esse tipo de situação e fruto de uma legislação fraca que permite que um empregador faça (e pergunte) o que bem entender para recrutar profissionais. Até temos algumas leis para evitar que isso aconteça, mas na prática elas são ignoradas e entram para a categorias de “leis que não pegaram”, algo comum em nosso país.

Em uma dessas discussões calorosas que eu mencionei, um empresário alegou “precisar” conhecer melhor a candidata e por isso era necessário perguntar sobre a vida pessoal. Minha resposta para ele: sorte sua, e de muitas outras empresas que fazem isso, de estar no Brasil.

Nos Estados Unidos e em muitos outros países europeus, é expressamente proibido fazer qualquer tipo de questionamento pessoal para o candidato. Não pode perguntar idade, religião, orientação política, estado civil e, principalmente, se tem filhos e qual a dinâmica da família. A ideia é proteger o profissional de qualquer tipo de discriminação e as empresas podem ser processadas por isso – e, de fato, muitas vezes são.

Eu faço essas perguntas porque preciso conhecer melhor o candidato

A desculpa mais comum para “ter” que fazer essas perguntas é a necessidade de conhecer melhor o candidato. Se não for possível saber mais sobre ele, vamos deixar de fora informação crucial para a tomada de decisão. Eu não consigo ver qualquer sentido nessa alegação, e tenho muita experiência sobre o assunto.

Trabalho em empresas americanas há 16 anos, já entrevistei e contratei literalmente centenas de profissionais sem nunca ter feito esse tipo de pergunta. Nunca mesmo. Temos treinamento pesado para não só garantir que essas perguntas não sejam feitas, mas também orientar o candidato que não precisamos falar sobre elas se ele trouxer as informações espontaneamente.

Sabe que diferença isso fez para a qualidade dos profissionais que contratamos? Nenhuma. Ao contrário, tenho orgulho de ter participado da contratação de times incríveis, produtivos e dos melhores que eu tive o privilégio de trabalhar até hoje. Se não submeter o candidato a esse tipo de questionamento pessoal fosse empecilho para a contratação de bons profissionais, empresas como o Google, Amazon, Netflix e outros lugares do sonho para se trabalhar não teriam os times que têm.

Eu até entendo o motivo de muita gente acreditar no mito de que é preciso invadir a privacidade de uma pessoa para conhecê-la melhor antes de uma contratação, mas, quando olhamos para lugares que não praticam isso, a ideia esfarela. Ela não faz sentido algum.

Preconceito e assédio

Para mim, é muito claro que essas perguntas não trazem qualquer suposto benefício para os processos seletivos, mas de uma coisa eu tenho certeza: trazem muito preconceito, discriminação, filtram pessoas com base em suas vidas pessoais, escolhas e não apenas por sua capacidade ou não de executar o trabalho. Removem novas mães com a ideia de que ela faltará para cuidar dos filhos pequenos, uma mulher solteira com medo que ela case e engravide logo ou qualquer coisa que possa tirar a atenção da profissional do trabalho. De novo: isso não faz sentido. Não existe qualquer pesquisa ou dados que apontem a diferença de produtividade entre pessoas que têm filhos, não têm ou vão ter em um futuro próximo.

Além disso, há um outro lado perverso do questionamento que trouxe no começo deste artigo, ele faz com que milhares e milhares de mulheres passem por situações vexatórias e desconfortáveis durante os processos seletivos. Já recebi centenas de relatos das minhas leitoras, com depoimentos de como se sentiram tristes e frustradas com essas perguntas e até mesmo indignadas com um entrevistador querendo saber a marca do anticoncepcional que ela usa (sinistro, né?) para provar que não estava mesmo tentando engravidar. Isso é absurdo que precisa acabar.

Se você ainda acredita nesse mito e tem o hábito de fazer esses tipos de pergunta em um processo seletivo, repense. Mesmo que você tenha certeza de que nunca vai usar essas informações para prejudicar alguém, está validando e alimentando um sistema em que a maioria irá. Experimente focar apenas no que é o mais importante: se a pessoa tem ou não as habilidades e experiências necessárias para o trabalho.

O resto é mito e alimento para discriminação.


:: Artigo originalmente publicado na revista HSM


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